quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dos versos que não rimaram

Os versos que decorei quando tinha oito ou nove anos para levar para a escola e declamar na frente da turma não faziam sentido nenhum para mim. A professora só pediu para levarmos um poema e lermos. Procurei nos livros que tinha em casa até achar um que gostasse. Achei! e gostei assim: sem muita razão e filosofia. Os versos tinham um ritmo, as rimas eram diferentes e eu tinha um tio que sempre lia (aquele tal) Fernando Pessoa. Então, ali, nos meus oito ou nove anos, entre gibis da Mônica, desenhos do Wally e a coleção do Sítio do Pica-Pau Amarelo, fiz questão de decorar Liberdade.

Aquele meu tio - com quem, depois, passaram a me comparar - era sempre alvo das minhas apurrinhações infantis durante as festas de família. Ele sentava de canto, sorrindo de canto, com o cigarro dançando nos dedos e a cerveja esquentando no copo. Não falava muito, brigava às vezes e, descaradamente, observava os familiares estranhos, familiares e estranhos no recinto. Entre uma bagunça com primos na sala e uma brincadeira no corredor, eu observava...

Observava.

Até que eu puxava uma cadeira entre os adultos, ele puxava papo entre os sobrinhos e eu pedia, com olhos de uma criança querendo doce, para declamar aquele... Aquele, tio! ... Você sabe, sim! ... Aquele "poema de 15 minutos"! Era assim pra mim, pois era o tempo cro-no-me-tra-do que eu prestava atenção nas palavras truncadas, declamadas.

Por causa dele, lembro exatamente da primeira vez que li um poema e da primeira vez que entendi uma falta de rima em Pessoa. O tio (ironicamente) Fernando nunca chegou a ouvir as palavras de Liberdade de minha boca - e eu aposto que ele se orgulharia da herança boêmia que deixou. Procurou do seu jeito as próprias liberdades no vão de uma janela do 6º andar em uma noite de domingo sem nem se dar tempo de poder dizer "Não sou nada". Na manhã seguinte: a epifania. Entendi que ele só estava dividido entre "a tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, e a sensação de que tudo é sonho como coisa real por dentro".

E no meio tempo entre o "poema de 15 minutos" e o "Tabacaria", eu muitos outros li, decorei, declamei, escrevi, rasguei, interpretei, entendi, entendi, ENTENDI! e percebi que talvez fosse melhor quando era só ritmo, rima e nada fazia sentido.

Mas não há como deixar de adorar àquele que nas entrelinhas me mergulhou entre versos.


JG


"Por que é que o cão é tão livre?
Porque ele é o mistério vivo que não se indaga"
Clarice Lispector

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