quarta-feira, 21 de abril de 2010

Erramos os erros certos

Nada adiantava. Os cinco segundos que antecipavam a entrada no palco eram icontrolavelmente perturbadores. Era um vontade agonizante de ir ao banheiro, uma preocupação súbita com o resto do elenco, uma lembrança atrasada de uma correção que deixou de ser feita... e isso. Todo o resto era compreensível, aceitável, ultrapassável. Mas isso não tinha solução ou explicação, tampouco previsão de suas conseqüencias. Isso era um grande ponto de interrogação latejante num vazio labiríntico. Isso era como a agonia contínua de uma calmaria em alto-mar. Não é à toa que isso é branco.

Aquela dimensão alva pra onde o corpo é levado num momento de milésimos e nem mesmo as perguntas a serem feitas são lembradas. É um amplo espaço leitoso: sem chão para seguir qualquer caminho que seja ou sem ponto no horizonte para guiar.

BRANCO.

E esse curtíssimo momento de loucura sem rumo é que dá o tempero certo para sair da coxia, encarar as luzes e dar as caras às palmas. O branco que tanto temo, temia, temerei, é apenas uma mostra concentrada daquilo que é o motor da rotina. É o "não saber o que esperar a seguir" condensado em um frio na barriga.
Uma vez uma grande amiga minha me disse e eu não parei de repetir desde então: a vida é uma ilha de decisões cercada de conseqüências. Se conseqüência é futuro, futuro é incerteza - um constante perguntar-se como será. Por mais que passe meses ensaiando os passos a serem dados, o frio na barriga sempre vai existir com uma pitada de "e agora?".

Hoje completam-se três redondas semanas que não escrevia aqui, equivalentes a três semanas que não compareço às minhas aulas de ballet. Coincidentemente, hoje faz três semanas que comecei a trabalhar diariamente na frente de um computador cercado por quatro paredes.

O período de branco na inspiração coincidiu com o branco mais intenso da dúvida. Porque não era só antes de entrar no palco que o ataque Omo Ação surgia intrépido, ele surgia também em pequenas picadas durante a coreografia, mas que, no fluxo dos passos, passavam quase despercebidos. E hoje, todo fim de tarde, quando saio do escritório ele vem e dá uma cutucada, pra fazer questionar-me se os passos estão realmente certos.

E aqui está a máxima contradição: o colorido furta-cor de todas as cores do palco se condensou no branco do golarinho da minha camisa social.



JG


"Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago por ilusão meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei.
Se hei de ser, sendo nada, o que serei."
-Pessoa-