domingo, 28 de março de 2010

Script

Na minha adolescência, eu não perdia um episódio de Dawson's Creek - um seriado sobre outros adolescentes cheios de dúvidas, problemas e relações pessoais caóticas. Minha mãe assistia comigo às vezes, depois do almoço, e dizia: "Que povo chato. Quando eu tinha essa idade, não ficava falando tanto e ia me divertir!". E eu tinha que concordar com ela. Eles passavam longos diálogos discutindo sobre as dificuldades de ter 17 anos, "como se fossem resolver os problemas da humanidade". Um amava sem ser correspondido, a outra era órfã, um era gay, uma tinha tendência suicída... Mas, para mim era tudo muito plausível e digno de longas discussões. Claro.

O que mais me surpreendia no seriado eram esses diálogos. Era incrível a capacidade que os personagens tinham de dizer tudo o que sentiam claramente, sem engasgar, com as palavras exatas, no tempo certo (só não eram sucintos). "Parecia" que tudo era ensaiado e espontâneo ao mesmo tempo - e aquilo me provocava inveja. Quando aparecia uma situação difícil a ser resolvida, eu passava dias passando mentalmente discursos, frases de efeito, chegava a treinar os gestos e olhares que adicionaria nos momentos certos - porque um olhar durante uma vírgula podia mudar toda a interpretação! Mas quando chegava a hora ficava tudo enrolado, não saía, esquecia pontos essenciais... Era tão frustrante! Por isso, passei a escrever. Nos escritos de diário, blog, fotolog ou nos rodapés das apostilas do ensino médio, eu tinha tempo para pensar, corrigir, revisar. Era uma possibilidade perfeita para poder salvar as palavras que morriam na garganta.

Hoje tem três palavrinhas presas aqui comigo, entre as amídalas e a ponta da língua, gritando lá de dentro, querendo sair. São uma frase curta, com destinatário certo e que, se forem lançadas, têm efeitos grandiosos. Não formam um discurso presidencial ou um soneto em versos alexandrinos - são só três palavras, quatro sílabas, sete letras, mas que resumem todas as obras. São três que precisam de um tempo pra amadurecer e têm hora certa pra sair. Mesmo os personagens de Dawson's Creek não as soltavam no meio de seus diálogos com levianidade - e quando o faziam, os diálogos se resumiam a longos silêncios (que tembém não eram sucintos). Mesmo nesse espaço onde derramo palavras sem pensar, prefiro não escrevê-las - "deixo assim estar sub-entendido..."

A melhor idéia então é deixá-las aqui dentro e fazer como aprendi na adolescência. Salvo-nas da garganta, onde agonizavam sem saber se saíam ou não e as trago pra calmaria dos olhos. Em vez de falar, deixo-nas escritas em letras cuidadosamente desenhadas no meu olhar. E quando você me olha tranquilo e fixamente, sei que já entendeu tudo que eu tenho pra dizer.



JG

quarta-feira, 24 de março de 2010

Desbravador

Minha mãe sempre me incentivou a ler, estudar, conhecer, explorar - ou qualquer outro verbo que me levasse ao conhecimento. Começou com quadrinhos da Turma da Mônica que se espalhavam por todos os cômodos da casa (principalmente o banheiro: santa proltrona digna de gibis!). Mesmo antes de saber ler, me divertia com as figuras. Com seis anos de idade eu lembro que estava indo comprar pão com minha vó, segurava a mão dela e ali, parado na calçada antes de atravessar a rua, li minha primeira palavra fora da escola: "L-i-n-d-a". Era só o nome da padaria, mas nunca mais esqueci da escrita cursiva no neon vermelho que desenhava na marquise: "Linda".

Depois minha mãe passou a me mostrar a obra completa do Sítio do Pica-Pau Amarelo e não parei mais de aprender. Gostava de estudar coisas novas, misérios, enciclopédias. Lembro até hoje da coleção de capa vermelha que tinha figuras aterrorizantes. Nunca pesquisava no volume de letra T, porque sempre abria na página que tinha a foto de um peixe enorme, com a bocarra escancarada como se fosse pular do livro! Ah, sempre fui muito chato por perguntar muito. No quintal da minha casa havia uma vastidão de coisas desconhecidas - "porquês" plantados em cada canto. "Por que tem uma pedra preta dentro da flor amarela?". "Por que tem tanto cipó em volta da árvore?". "Por que o tatuzinho se enrola quando eu pego ele?". Adorava a escola e nada me limitava.

Na mesma época, aprendi a dançar. Minha mãe me perguntou, enquanto entrava comigo de mãos dadas na escola: "O que você acha de fazer sapateado?". Com certeza não me lembro das palavras exatas, mas é impossível esquecer da minha resposta afirmativa. Das minhas memórias arranhadas, entendo que não foi um momento de grande entusiasmo, mas disse "sim" simplesmente para aprender mais alguma coisa nova.

E fui aprendendo, conhecendo, respondendo minhas dúvidas enquanto crescia e mais perguntas apareciam - cada vez mais desafiadoras. Até que passei a conhecer pessoas e conhecer as pessoas. Os gestos, os olhares, os significados das falas; porque as palavras faladas já conhecia, só não sabia de suas múltiplas distorções. E junto das pessoas, fui aprendendo a sentir e os sentimentos; porque as palavras que os designavam já conhecia, só não sabia o que era até eu sentir e perceber.

Desde então, o ser humano passou a ser a disciplina que mais gosto de ler, estudar, conhecer, explorar... Desde então os sentimentos são dúvidas, incertezas, inspirações - porquês plantados em todo canto, em toda fala, em todo olhar, em todo gesto. Dessa vez não tem enciclopédia pra pesquisar ou adulto pra questionar. Não tem respota, não faz sentido.

E é melhor deixar assim, pra que eu nunca deixe de me vislumbrar quando eu ler "carinho" estampado na fachada de alguém.




JG

sexta-feira, 19 de março de 2010

O inevitável

Eu tinha inocentes 11 anos, estava há pouco tempo na cidade nova e me habituava às mudanças. Ainda não via grandes vantagens em mudar pro interior, longe da minha escola de sempre, meus amigos de sempre. Tinha a idéia de que seria apenas umas férias mais longas: um tempo a mais com meus parentes que só via em julho ou janeiro. E com o tempo descobri que isso era um grande ponto positivo. Primeiro, por causa dos primos da minha idade, depois por causa das tias que cozinhavam tão bem, e, por último - e principalmente - por causa dela, a grande anciã que era um grande mistério pra mim: a Bivó.

Naquela época ela já completava mais de 100 anos. E vou repetir (como nos filmes, a gente tem que voltar a fala para ter certeza que ouviu direit): Naquela época ela já completava CEM anos. Para mim isso já era um grande fenômeno, impossível de acontecer duas vezes. Adorava quando conversava com algum amigo novo na cidade e o assunto chegava na Bivó, só para ter o prazer orgulhoso de dizer "CEM anos".

Ela passava os dias na cadeira de rodas, com as costas arqueadas, sempre de camisola e óculos fixos. Assistia TV, dormia, comia biscoitos com leite e conversava muito com quem estivesse do lado. E ali, paradinha no seu canto, ela era um grande centro de diversão para todos os bisnetos. Na sua pele fina, cheia de ruguinhas, brincávamos de desenhar montanhas. Mas o melhor era quando puxávamos qualquer assunto para ela acabar declamando poeminhas bobos. Ela falava com a voz tremida - mas sempre muito viva! - assim: "Lá em cima daquele morro, tem um buraco de tatu, passa boi passa boiada no buraco do seu..." Hahahaha Todo mundo ria! E os bisnetos pediam de novo, de novo, de novo! Até que ela mandasse todos pra bem longe! Corríamos como se ela fosse correr atrás da gente. Se imaginássemos bem, talvez fosse possível que o fizesse.

Cem anos tão vivos. Mesmo que ali, paradinha na frente da TV, comendo papinha, às vezes reclamando. Pra mim ela seria eterna. (impossível não existir). Do mesmo jeito que eu achava que seria criança pra sempre. (impossível saber que existo).

Um dia eu estava sentado no tapete da sala e era bem cedo - acordava esse horário pra assistir os melhores desenhos. Não lembro do resto do dia, talvez eu não tivesse escola naquele dia. Mas minha tia veio devagar na minha direção, agachou do meu lado, colocou as mãos nas minhas costas e eu lembro de me sentir bem adulto naquele momento. Todos aqueles trejeitos que antecederam a fala da minha tia: a cabeça baixa, a falta de sorriso no "bom dia"; tudo me marcou pra sempre como um sinal de notícias infelizes. Ela disse devagar e de uma vez só: "A Bivó morreu, João". Não, ela não usou "faleceu" com uma criança, eu mal entendia o que seria morrer, mas pelo jeito eu nao a veria mais. Calei e desliguei os melhores desenhos.

No seu velório, porém, eu sorria, porque todos diziam baixinho nas conversas de carpideira: "cento e dois anos", "cento e dois anos", "cento e dois anos"...

Com o tempo, os gestos da minha tia naquela manhã foram se reproduzindo em outras pessoas, outras falas. Que passaram a ficar mais sérias e, na maioria das vezes, mais delongadas, menos diretas como naquela manhã. (Que besteira...) Hoje eu encaro até as ligações em horários incomuns como uma mão nas costas e uma cabeça baixa. Quando ligam muito tarde, ou muito cedo, já atendo o telefone sem um sorriso no "alô". As despedidas tornaram-se tão comuns. E mesmo assim não consigo me acostumar.

Mas a cada telefonema vou descobrindo que não sou mais criança e que as pessoas não são eternas. Aos poucos vou aceitando que o impossível é na verdade o inevitável.



JG

Faça o que falo, mas...

Sofrer por antecipação é o mais bobo dos sofrimentos. E o mais inútil! De que adianta ficar esperneando, como diz minha mãe, se a certeza só vem no futuro? E já que tens a certeza que irás sofrer lá nesse futuro, de que adianta tanto drama até o dia chegar? Pra ser radical eu digo: todos vamos morrer. Então, até lá, vamos sofrer? Não! Então, com todo o resto é a mesma coisa. Se a notícia chega e você não tem mais o que fazer, a nao ser esperar o pior acontecer, aproveite o máximo até o dia chegar! Se fizer assim, pode ser que nem vais sofrer por sucessão! Porque terás mais memórias boas pra compensar.

Mas acontece que é inevitável...



JG

quinta-feira, 18 de março de 2010

Semtemporâneo?

O tempo consumiu minhas horas, assim, meio que incompreensivelmente. Todo tempo livre que me restou eu usei pra dar tempo ao tempo. Mas isso não significa que me sentei em banco de ferro para esperar, porque nem ao menos sentei: continuiei correndo contra o tempo. Aguardei as respotas que viriam com o tempo mas continuava correndo atrás do tempo perdido. E nesse meio-tempo, me caiu um temporal de preocupações, incertezas e maratonas improdutivas.

Então, tentei me poupar de tantos aflitos pensamentos, sem ter que pensar no futuro, enquanto tento desenrolar o presente. Estou aproveitanto tanto quanto tem pra aproveitar até que seja preciso tomar tudo pelos braços e partir. Cada tic-tac tá sendo, mesmo, uma balinha que tento saborear por todo sempre. Vou decompondo cada momento como cata-vento em vento outonal. Devagar, cada cor, cada sabor, no tempo certo. Até os últimos segundos do segundo tempo.


JG


"Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora"