sexta-feira, 19 de março de 2010

O inevitável

Eu tinha inocentes 11 anos, estava há pouco tempo na cidade nova e me habituava às mudanças. Ainda não via grandes vantagens em mudar pro interior, longe da minha escola de sempre, meus amigos de sempre. Tinha a idéia de que seria apenas umas férias mais longas: um tempo a mais com meus parentes que só via em julho ou janeiro. E com o tempo descobri que isso era um grande ponto positivo. Primeiro, por causa dos primos da minha idade, depois por causa das tias que cozinhavam tão bem, e, por último - e principalmente - por causa dela, a grande anciã que era um grande mistério pra mim: a Bivó.

Naquela época ela já completava mais de 100 anos. E vou repetir (como nos filmes, a gente tem que voltar a fala para ter certeza que ouviu direit): Naquela época ela já completava CEM anos. Para mim isso já era um grande fenômeno, impossível de acontecer duas vezes. Adorava quando conversava com algum amigo novo na cidade e o assunto chegava na Bivó, só para ter o prazer orgulhoso de dizer "CEM anos".

Ela passava os dias na cadeira de rodas, com as costas arqueadas, sempre de camisola e óculos fixos. Assistia TV, dormia, comia biscoitos com leite e conversava muito com quem estivesse do lado. E ali, paradinha no seu canto, ela era um grande centro de diversão para todos os bisnetos. Na sua pele fina, cheia de ruguinhas, brincávamos de desenhar montanhas. Mas o melhor era quando puxávamos qualquer assunto para ela acabar declamando poeminhas bobos. Ela falava com a voz tremida - mas sempre muito viva! - assim: "Lá em cima daquele morro, tem um buraco de tatu, passa boi passa boiada no buraco do seu..." Hahahaha Todo mundo ria! E os bisnetos pediam de novo, de novo, de novo! Até que ela mandasse todos pra bem longe! Corríamos como se ela fosse correr atrás da gente. Se imaginássemos bem, talvez fosse possível que o fizesse.

Cem anos tão vivos. Mesmo que ali, paradinha na frente da TV, comendo papinha, às vezes reclamando. Pra mim ela seria eterna. (impossível não existir). Do mesmo jeito que eu achava que seria criança pra sempre. (impossível saber que existo).

Um dia eu estava sentado no tapete da sala e era bem cedo - acordava esse horário pra assistir os melhores desenhos. Não lembro do resto do dia, talvez eu não tivesse escola naquele dia. Mas minha tia veio devagar na minha direção, agachou do meu lado, colocou as mãos nas minhas costas e eu lembro de me sentir bem adulto naquele momento. Todos aqueles trejeitos que antecederam a fala da minha tia: a cabeça baixa, a falta de sorriso no "bom dia"; tudo me marcou pra sempre como um sinal de notícias infelizes. Ela disse devagar e de uma vez só: "A Bivó morreu, João". Não, ela não usou "faleceu" com uma criança, eu mal entendia o que seria morrer, mas pelo jeito eu nao a veria mais. Calei e desliguei os melhores desenhos.

No seu velório, porém, eu sorria, porque todos diziam baixinho nas conversas de carpideira: "cento e dois anos", "cento e dois anos", "cento e dois anos"...

Com o tempo, os gestos da minha tia naquela manhã foram se reproduzindo em outras pessoas, outras falas. Que passaram a ficar mais sérias e, na maioria das vezes, mais delongadas, menos diretas como naquela manhã. (Que besteira...) Hoje eu encaro até as ligações em horários incomuns como uma mão nas costas e uma cabeça baixa. Quando ligam muito tarde, ou muito cedo, já atendo o telefone sem um sorriso no "alô". As despedidas tornaram-se tão comuns. E mesmo assim não consigo me acostumar.

Mas a cada telefonema vou descobrindo que não sou mais criança e que as pessoas não são eternas. Aos poucos vou aceitando que o impossível é na verdade o inevitável.



JG

2 comentários:

  1. me fez chorar, joão.
    lindo.
    vou voltar aqui sempre!
    muitos beijos

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  2. É estranho pensar nisso, ainda mais quando parece que isso nunca vai acontecer ao nosso redor ou com a gente mesmo. Porém, por mais triste que seja, quando esse tipo de coisa acontece, pelo menos uma coisa boa vem disso: a lembrança do quanto devemos aproveitar a presença das pessoas que amamos enquanto elas estão presentes...

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